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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Resenha do livro 'A privataria tucana'

Pelo menos dois amigos de esquerda estão curiosos para saber o que eu tenho a dizer sobre o livro, então 'bora escrever logo, ainda no warm-up da volta ao trabalho. Um deles foi gentil em me mandar uma cópia, aí estava automaticamente sujeito à "Lei do Círculo do Livro" (ganhar livro = obrigação de resenhar).


Eu mesmo não colocaria a mão no bolso para comprá-lo, porque julguei inicialmente que o livro estaria no mesmo nível do "Honoráveis Bandidos", de Palmério Dória. Por mais que eu não goste do Sarney, uma folheada rápida numa livraria deu a impressão de ser um livro escrito com raiva.


Mas felizmente o Privataria é de nível mais alto.


Primeiro, vamos falar de estética. O livro é bonito, o trabalho gráfico externo e interno é bom, a gramatura das páginas é boa, o tipo e tamanho da letra é legal, aparentemente nenhum erro tipográfico ou ortográfico deixado para trás.


Pelo menos no início, o livro é muito bem escrito. Aquela coisa: frases e parágrafos do tamanho certo, estilo agradável, uma frase puxa a outra e você quer continuar lendo. Não sei por quê, lembrou o estilo do Ivan Sant'Anna [1].


Em termos de conteúdo, o livro tem três partes bem claras e quase estanques entre si.


A primeira parte, a mais interessante e bem escrita, fala sobre as falcatruas do processo de privatização. Não são exatamente novidade, cada item "soou um sino" em algum lugar da memória, lembrou de reportagens dos anos 90 etc. O trabalho do jornalista foi investigativo e enciclopédico.


O autor não esconde que foi contra as privatizações (é um direito dele) mas faz diversos apelos à razão para convencer o eventual leitor pró-privatização (do qual sou espécime) que o processo não foi conduzido com lisura.


A editora Geração Editorial anuncia-o como um "livro sobre história recente". Ela possui outros títulos nesta linha, sem distinguir direitistas ou esquerdistas. Tem porrada no Maluf, no Steinbruch e no Lula.


A primeira parte do 'Privataria' é, realmente, um livro de História. Também é a única realmente relacionada ao título.


A segunda parte é mais focada em José Serra. É bem escrita, embora não tanto quanto a primeira. O foco no Serra e notável ausência de denúnicas contra outros próceres do PSDB (Aécio, FHC, Alckmin) pode ser interpretado como uma posição "aecista" do autor, uma 'pega' com o Serra, ou simplesmente um bom foco. Como disse Freud, às vezes um charuto é só um charuto, e não um objeto fálico.


A propósito, um personagem profusamente citado ao longo de todo o livro é Ricardo Sérgio de Oliveira, tesoureiro de várias campanhas do PSDB. Os tesoureiros de campanha brasileiros, seja qual for o partido, estão sempre na ribalta...


Os mecanismos para lavagem de dinheiro descritos no livro são verdadeiros e, na verdade, bastante conhecidos por quem é do ramo. Quem tem curiosidade a respeito destas "artes" vai encontrar uma boa referência no livro.


A forma que as estatais (em particular o Banco do Brasil) e fundos de previdência estatais foram (e provavelmente continuam sendo) induzidos a atuar em prol de interesses particulares também foi leitura atraente, e ao mesmo tempo desagradável; você fica se sentindo um idiota, tentando chegar a uma vida abastada meramente pelo trabalho...


Fica também mais claro o mapa do sentimento anti-SP. Fica claro que ele transcende partidos e tem um pólo muito importante em MG.


A terceira parte do livro é a menos brilhante. Não é ruim, mas as outras duas são melhores. Provavelmente porque é autobiográfica: na campanha eleitoral de 2010, o autor foi acusado de violar sigilo fiscal de pessoas próximas de Serra, acusação de que ele se defende muito bem no livro. Na verdade minha maior "bronca" com este tomo é a menor beleza estética do texto, mesmo.


Mas há coisas interessantes também nesta parte, em particular as brigas internas do PT e do PSDB, onde uma reportagem contra o PT acaba respingando em alguém do PSDB, aí o outro grupo desmente e assim vai. O caminho hamiltoniano dos rabos presos é bem comprido e transcende partidos e ideologias.


A participação nada inocente da imprensa também é aspecto interessante da leitura.


A propósito, o autor bate na tecla da imprensa algumas vezes durante a primeira parte, sobre como a imprensa "preparou o terreno" para convencer a população a respeito da necessidade de privatizar etc.


Disso eu discordo parcialmente; quem preparou o terreno para as privatizações foi a bagunça total reinante no Brasil nos 20 anos anteriores. Hoje as coisas estão melhores e nós brasileiros estamos voltando a ser lenientes, resistentes a mudanças. Mas opinião é como bunda, cada um tem a sua.


Conclusões, nitpicking, conclusões


O livro em si é bom. É mais enciclopédico que bombástico. Abre o caminho para mais trabalhos, que certamente virão, a respeito deste capítulo da história brasileira.


Os apelos à razão sobre quão mal-feitas foram as privatizações, são quase todos verdadeiros. O autor concentrou-se mais nas teles (que na época, diferentemente de hoje, eram as estrelas das Bolsas do mundo todo). Pessoalmente, conheço um modelo de privatização ainda pior: o das ferrovias.


Por qualquer motivo o autor falou de "moedas podres" sem explicar exatamente o que são. Deu a impressão que pagaram pelas nossas amadas estatais com cruzeiros velhos ou coisa parecida. Na verdade, moedas podres são títulos emitidos pelo governo no passado, mas que não puderam ser resgatados, e valem muito menos que seu valor de face no mercado.


Uma decepção geral a respeito das privatizações, inclusive para mim, foi a promessa não cumprida de que esta serviria para abater a dívida total do governo. Entraram aí diversos componentes: o gasto não foi contido; uma certa pressa de finalizar o processo; bastante azar com as crises mundiais.


Não, não mudou minha opinião sobre privatizações. Eu simplesmente não vejo sentido naquele mantra "empresa estatal pertence a todos nós". Uma ova. Pertence aos respectivos funcionários, e quando muito ao governo du jour. Por mim, podiam ter privatizado todas de graça (segundo os detratores, foi isto mesmo que aconteceu) e o resultado final para todos nós seria melhor do que mantê-las estatais. O resto do povo brasileiro, o Lula e a Dilma parecem concordar com a minha opinião, já que não procuraram reverter o processo nem auditá-lo a fundo.


Ficou claro que as estatais e respectivos fundos de previdência são ferramentas poderosas do governo, seja para privilegiar particulares ou levar a cabo suas políticas. O simples fato do governo FHC ter reduzido-as em número e escopo já é lucro; menos graus de liberdade para corrupção.


O grande feito do FHC foi ter tornado o Brasil um 'país de verdade', coisa que não era antes. O grande feito do Lula foi ter tornado o Brasil um país com mercado interno forte, coisa que não tinha antes. Como (auto-?)sugestão para futuros trabalhos, seria interessante explorar a hipótese de que a privatização foi preposterada -- ou seja, a ordem 'correta' teria sido criar mercado interno e depois privatizar, numa hipotética eleição do Lula em 1994 e de alguém mais à direita em 2002.




[1] Ivan Sant'Anna é autor de livros sobre aeronáutica. Entre eles "Caixa-Preta", excelente livro sobre três acidentes aéreos envolvendo aviões brasileiros, e "Plano de Ataque", sobre os atentados de 11 de Setembro.


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